Quem sou eu

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Para quando chover.






E nas ruas que antes secas e estridentes,
Onde nadavam outrora em um mar de poeira,
Agora se via o restolho suburbano, indagando lamentavelmente, aburridos de suas vidas mesquinhas.
Logo ali, mais a frente, onde as vistas custam a enxergar,
Escorregadios na enxurrada imunda das gotas escassas que caiam do céu triste e carregado que ainda ontem fora voraz e medonho se esbaldavam gatos pardos atrás de ratos fartos que futricavam entre os trapos.
- Eu via da janela. Eu via a vida.
Ainda me arrepiam os assobios tristonhos do vento que adentravam minha sala úmida e fria,
E os estrondosos trovões, os trovões que tilintavam a louça na prateleira, abastecendo ainda mais a sinfonia do medo que pairava por ali.
Minha prateleira, herdada de minha avó, que herdara também de sua avó, capengava ali no cantinho, solitária e empoeirada, tão mais triste que minha poltrona velha e rasgada, cor de mofo, creio que outrora ela fora verde seco.
Agora lá do lado de fora a moça do vestido dégradé, quase cinza, que outrora penso ter sido branco ou de um bege clarinho, entregava pães quentes a esposa loira e peituda de seu amante velho e gordo e rico.
- Eu via.
Essa tal moça peituda, ainda pouco se via em um cabaré, rodeado de outras tantas meretrizes, fartando-se de uísque quente e cigarros bancados por magnatas que ali deixavam herdeiros bastardos, que depois mais grandinhos faziam sua própria vida assaltando os ricos pais e moribundos.
- Eu via a vida. Nua e crua naquela época... Mais nua do que crua!
O marido?
Banqueiro fedido e gordo que só de bom tinha o dinheiro, desviado do banco por sinal, fumando seu cachimbo negro reluzente, e de forma escrota coçava o saco vagarosamente indiciando que a noite pra sorrateira senhorita dos pães, que lhe fitava descaradamente, que sua noite ia ser longa, mas bem lucrativa, já que era ele que lhe pagava o pensionato, para ela e seu irmão mais novo, com seus vinte e poucos anos.
Mais adiante na esquina, onde o sol sempre caia cansado de olhar para aquele lugar, sentada na varanda de madeira oca e esfarinhada pelos longos anos de cupins, estavam duas senhoras, uma crente e outra fervorosa, com seus peitos caídos, e vestidos estampados, de nariz empinado, cochichando sem notar o rapaz a reparar as indecências que falavam.
O rapaz engomadinho, talvez de uma delas fosse o sobrinho, esse ainda pouco era um moleque, agora de pileque ia com alguém se encontrar, a velha mais fofoqueira, disse outra asneira dando tempo dele a escutar.
“- Ele não perde um rabo de saia.”
Se bem soubesse a velha senhora, com quem o rapaz namora, nada ia comentar, apressadinho ao pensionato o rapaz se adentrada, ao quarto da moça dos pães foste bater. Um minuto depois...
- Eu vi quem foi atender, mas prefiro não comentar, você vai ficar a imaginar.
Desviando o olhar agora, encarando a vidraça mais a frente, pude notar um velho a balbuciar palavras descontentes, resmungos incoerentes sobre a vida agitada daquele lugar, se bem lúcido estou ainda a reparar, pensei em acreditar ter um irmão gêmeo.
-Eu o vi olhando pra mim.
                                                                                             
(Rafael Augusto)



4 comentários:

  1. Eu fico impressionada em como você consegue. As palavras parecem ter um encaixe perfeito e a sonoridade é ótima. Você escreve muito bem e pode escrever mais porque vou estar aqui pra ler :D

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  2. Nossa Rafa,
    esse é o primeiro texto que vejo vc realmente extrair a coisa.
    Muito legal,
    muito real.
    Isso é a arte de escrever.

    Parabéns.
    continue escrevendo.

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  3. Gostei da sonoridade, gato.
    Da musicalidade, até.

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  4. O seu irmão gêmeo sou eu, muleque! (gingando) rs
    Só expectar a vida deve ser chato... tem muita coisa que a gente só vive estando do outro lado da janela. Contar as histórias de quem vê pela janela deve ser bom, mas nada como contracenar.

    Um beijo na jebinha.

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